Por Joelza Ester Domingues
“Não se acende fósforo para verificar vazamento de gás.”
O conselho vale como metáfora para a situação política atual. Entenda-se por fósforo: a crítica mordaz, a acusação sem prova, a ofensa pessoal, a intolerância e até a irresponsabilidade social.
E é em nome da responsabilidade social que faço essa breve reflexão. Qual o nosso papel, nesse momento, diante de nossos alunos? Continuamos com nossa aula enquanto um quadro explosivo espalha-se pelo país?
Estamos vivendo um momento histórico sobre o qual não se pode ficar calado. Daí eu proponho levar o tema para a sala de aula, sem partidarismo e sem acusações levianas, norteados pela pergunta: o que podemos aprender com essa crise? Destaco três grandes lições do atual quadro político e social.
1.Transparência política
O termo é conhecido, mas vale a pena ser retomado. Transparência política é a obrigação dos governos de dar conta aos cidadãos de todas suas ações, especialmente do uso do dinheiro público, de permitir acesso a toda informação relacionada ao interesse público ou até mesmo de um único indivíduo. É o cuidado de explicar, descrever fatos e circunstância e, por conseguinte, de reconhecer erros ou imperícia.
O objetivo da transparência política é estabelecer uma relação de confiança entre governantes e governados, e de refrear a corrupção.
A transparência política é um valor fundamental da política e da gestão pública, mas não pode ser confundida com vigilância policial da sociedade sob o pretexto de que todo político é ladrão. Essa confusão leva a uma paralisia institucional que nada contribui ao desenvolvimento do país, ao contrário, fragiliza a democracia. Uma tal desconfiança cega e irracional criminaliza a política e facilmente descamba para o apoio a líderes ditatoriais ou salvadores da pátria oportunistas.
Se pedimos conta ao governante de seus atos, precisamos ouvi-lo. Se o argumento não nos convence, reformulamos a pergunta e questionamos novamente. Vamos examinar os arquivos, as notas, os registros que, em nome da transparência devem estar disponíveis.
2. Tolerância é aceitar o que desaprovamos
Viver numa democracia moderna quer dizer conviver com costumes, ideias e valores que desaprovamos. Conviver é tão democrático quanto desaprovar. Unanimidade nacional só existe em regimes totalitários. A frase “quem não estiver gostando que caia fora” é uma forma de intolerância que anda de mãos dadas com a limpeza étnica, o horror à mestiçagem, o racismo e o preconceito.
Tolerância é reconhecer que todos temos algo democraticamente comum: uma base sobre a qual se assentam realidades plurais. A base única é formada pelas leis. E as leis devem ser iguais para todos resguardando os direitos humanos e determinando os deveres correspondentes.
A tolerância implica em respeito às pessoas e a seus direitos civis. Posso discordar das ideias e crenças do outro, mas minha desaprovação se revela na argumentação onde apresento contradições, outros pontos de vista etc. Ofender a pessoa, atacar sua dignidade, ferir sua intimidade pessoal é intolerância criminosa.
3. Ninguém está acima da lei
Esta frase traduz um antigo preceito republicano dirigida ao governante e aos poderosos. Quer dizer, que o governante não detém o poder por si, mas em nome do povo exercendo-o nos limites das leis, democraticamente instituídas. O “Ninguém está acima da lei” é uma conquista da sociedade democrática contra os governos autoritários.
Muitas vezes, essa frase é rebatida pelo argumento de que “sempre foi assim” ou “outros fizeram e não foram punidos”. Acreditar que “sempre foi assim” é uma lógica primitiva, a mesma que regulava a vida dos povos antigos que se apoiavam na tradição e em mitos. É um argumento teológico que não tem sentido no mundo moderno e muito menos em uma sociedade democrática. É ignorar a história da humanidade e a sua própria história.
Argumentar que “outros fizeram e não foram punidos” é uma defesa pueril. É querer relativizar a gravidade de um ato criminoso e apostar na impunidade. Não se justifica um erro, um desvio ou um crime porque já foi feito por outras pessoas. Esse argumento não absolve ninguém de ser levado à justiça e, se culpado, condenado.
A aversão aos limites da lei ou de se achar acima dela aparece também em situações do cotidiano como, por exemplo, não respeitar o sinal de trânsito e furar fila. E o espertinho, quando pego em flagrante, lança a clássica pergunta “sabe com quem você está falando?” A pergunta denota a (falsa) crença de superioridade frente ao resto da humanidade, que destrói o princípio de igualdade e de direito democrático.
Se ninguém está acima da lei, qual é a finalidade do poder? Pode-se resumir em uma simples resposta: a finalidade do poder é servir. Um poder que se serve, em vez de servir, é um poder que não serve. O Estado é feito para os indivíduos, e não os indivíduos para o Estado.
Era para evitar a arrogância do governante, que o faria sentir-se superior aos demais, que os antigos romanos tinham um costume bem interessante. Quando o general voltava vitorioso de uma guerra difícil, ele era recebido em “triunfo”, desfilando numa biga conduzida por um escravo. Passava sob o arco do triunfo aclamado pela multidão, e recebia dos senadores a coroa de louros e a salva de palmas (literalmente, uma bandeja de prata com folhas de palmas que, com o tempo, tornou-se sinônimo de “aplausos”).
Durante todo trajeto pelas ruas de Roma, a cada trecho do desfile triunfal, um escravo subia na biga e assoprava no ouvido do general a frase: “Lembra-te que és mortal”. A frase lembrava ao general que ele não estava acima dos deuses, e que seu sucesso e poder eram temporários.
Termino com uma parábola que fala tanto de democracia quanto de capitalismo, com seu poder de despertar inveja e aristocratizar pelo dinheiro. Ela é contada pelo antropólogo e professor Roberto Da Matta:
"Conta-se que, numa reunião na mansão de um bilionário americano, o escritor Kurt Vonnegut Jr., perguntou ao seu colega Joseph Heller: 'Você não fica chateado sabendo que esse cara ganha mais num dia do que você jamais ganhou com a vende de seu livro no mundo todo?'. Heller respondeu: 'Não, porque eu tenho alguma coisa que esse cara não tem'. Vonnegut olhou firme para ele e disse: 'E o que é que você pode ter que esse sujeito já não tenha?'. Resposta do Heller: 'Eu conheço o significado da palavra suficiente'.
É justamente esse suficiente que nos torna resistentes ao poder do dinheiro como valor absoluto, capaz de romper limites numa sociedade de iguais. É a noção do suficiente que nos dá uma dimensão muito importante da vida: permite valorizar o que somos e temos, o modo como vivemos, os nossos prazeres e escolhas. Permite, acima de tudo, não se apropriar do que não é nosso.
Fonte: http://www.ensinarhistoriajoelza.com.br/o-que-falar-aos-nossos-alunos-diante-dessa-crise/ - Blog: Ensinar História - Joelza Ester Domingues
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